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Pensar politicamente com Jacques Rancière

Atualizado: 27 de set. de 2020

Os conceitos de Rancière são conceitos-imagem. O destino deles não é a representação do real, não são como tentativas de retrato ou descrição, pois o que está em jogo não é a possibilidade de um veredito sobre um fenômeno determinado, seja por verificação empírica, seja por uma cadeia argumentativa que tente demonstrar que tal forma de dizer é a melhor alternativa que nós temos. “Imagem”, portanto, não pode ser um termo compreendido a partir dos reducionismos que aprendemos bem com as epistemologias da Revolução Científica e suas variadas tentativas de difamar a imaginação humana como potência de falsificação arbitrária, como local de fala de uma massa turbulenta e insubordinada aos protocolos da racionalidade. Isso significaria que a imagem poderia muito bem representar verdadeiramente o real se não estivesse amaldiçoada desde sua origem, se esse pertencimento ao âmbito da imaginação não lhe destinasse ao erro, à ilusão, ao delírio, ao fantasma que perturba o sono da epistemologia em busca de uma segurança utópica.


Falo aqui de “imagem” da mesma maneira que Rancière fala de “percepção”: tentando recuperar uma forma de pensar que precede isso tudo – em ambos os casos, chegamos a Aristóteles. É na concepção aristotélica da psique humana que encontramos a imagem como aquilo sem o qual simplesmente não há conhecimento. Não há conhecimento porque não há forma de mediar o sensível e o inteligível. Quando Rancière nos apresenta um conceito, o que está em jogo não é a relação entre uma construção inteligível e um fenômeno da experiência sensível, mas a própria organização dessa experiência, o modo como ela é processada antes de sequer chegar a esse nível de abstração que chamamos de “conhecimento”. Tudo começa e termina no modo como percebemos as coisas, no modo como elas se manifestam para nós. O aparecer do fenômeno, antes de ser também reduzido drasticamente pelos métodos da Revolução e encerrado naquilo que qualificamos pobremente como “físico” já há algum tempo, era um aparecer atravessado pelo social. O que marca realmente a diferença entre o humano e o não-humano, em Aristóteles, não é o logos em si, mas logos como marca ou sinal de uma outra coisa que, essa sim, constitui a diferença: a aísthêsis humana. É o fato de poder perceber algo como justo ou injusto, por exemplo, que caracteriza a humanidade aristotélica. E é disso que se trata o problema da sensibilidade ou da percepção em Rancière.


Foto: Ig @junglebrother


Como mudamos as percepções que temos do justo e do injusto? Do próprio e do impróprio? Em Rancière, lidamos com as formas de insensibilidade social que removem de cena alguns sujeitos, não enquanto corpos “físicos” em si e como um todo empobrecido, mas enquanto qualificados ou não por certo atributo. A interdição que certos corpos sofrem ao tentarem participar da cidadania ou da universalidade de um direito – ou mesmo da universalidade do humano – não se dá porque eles não são visualizados como corpos. O que falta é sempre algo no corpo que o qualificaria para a participação no comum. O sujeito que não vemos e não ouvimos está ali, diante de nós, habitando nosso campo visual e emitindo sons que chegam ao nosso aparelho auditivo. É sempre conveniente, para aquele que não quer ver ou ouvir, reafirmar que nada mais há aí para ser visto ou ouvido. Não há nada mais aí para ser visto ou ouvido é o imperativo policial por excelência. A fórmula da identificação entre o que é percebido e o que há para ser percebido em determinado cenário. O conceito-imagem deve poder realizar suas operações justamente aí onde se tenta firmar a autoevidência de um “nada mais”.


Ocupado com as variadas formas que as pessoas encontram para perturbar essa identificação policial e demonstrar o não é visto ou ouvido, Rancière não poderia deixar de incorporar algo de seu próprio objeto discursivo em sua metodologia. Seus textos não possuem a função de dizer verdadeiramente, assim como a reivindicação política não pretende descrever o que é ou não é o caso. O fato empírico da humanidade de certos corpos nunca foi o suficiente para mover um tribunal. Nem é suficiente argumentar sem fim como forma de apelar a um racionalismo qualquer, como se a disputa de argumentos pudesse terminar com um consenso sobre o que é justo ou injusto. Esse consenso precede a argumentação porque ele faz parte da própria constituição da cena em que se desenrola a disputa. A reivindicação política coloca em disputa precisamente a reorganização da cena em termos de sua ordenação sensível.


O sensível é social. Não é político, pois, em Rancière, o conceito-imagem da política não serve para nos dar mais uma definição de “política” entre outras. O que ele faz é nos convidar a perceber a política como algo que não se encerra nos nossos pressupostos sobre o que é e o que deve ser política, sobre o politicamente apropriado ou impróprio, nas identificações imaginárias que promovemos no presente. É um convite à abertura radical que nos torna mais capazes de receber e visualizar de maneira generosa a manifestação política do outro. Pouco importa definir o fenômeno político de maneira definitiva ou buscar a teoria ideal para aplicarmos incessantemente a tudo ao nosso redor, passado, presente, futuro. Uma definição de “política” que se difunde com sucesso, mesmo que tudo pareça indicar que ela é verdadeira, acaba por compor o que certa comunidade imaginará ser propriamente político. Fingimos que não sabemos as implicações disso porque cremos excessivamente no progresso e no progressismo como modo de vida, porque achamos que estamos politicamente melhores que as comunidades do passado e que, com a condução impecável do Esclarecimento e a certeza da História ao nosso lado, finalmente atingiremos a sonhada igualdade. Não deveríamos ter tanta fé em nossa justiça quando a igualdade é um fim a ser atingido e não um princípio que governa nossas interações. Estamos sempre dependendo de que o outro que sofre a violência tenha sucesso em perturbar o cenário ao ponto de fazer ver o que escapa à normalidade entranhada como autoevidente.


Assim, o texto de Rancière é sempre o texto de uma polêmica contra a sensibilidade normalizada, uma reprodução do próprio dissenso que ele conjura em suas páginas. Sempre uma intervenção contextualizada, mas que, ainda assim, pode nos servir de muitas maneiras. Rancière não está falando conosco porque não está dizendo o verdadeiro por trás das aparências para o mundo, para a humanidade enquanto público passivo do intelectual. Mas, ao mesmo tempo, está falando algo que nos diz respeito. Podemos ser tanto o sujeito excluído que busca ferramentas conceituais para pensar melhor sua própria luta, como o sujeito que exclui ao reafirmar as fronteiras sustentadas e fundadas por um conjunto de percepções autoevidentes que nos informam sobre o que é politicamente adequado, suficiente, apropriado, revolucionário, correto etc. A tarefa crítica por excelência não é um ceticismo que se converte frequentemente em desonestidade, mas a desconfiança na onipotência humana de dizer o que é e o que não é – este é o problema posto por Protágoras, e gostaria de lembrar que a questão do que é justo e que não é está incluída nele. Se nós somos a medida daquilo que é socialmente mediado em seu aparecer, como é o caso quando uma noção de justiça é tida como autoevidente no modo dos membros de uma comunidade visualizarem uns aos outros e suas ações e seus discursos, e se a obviedade se caracteriza pelo fato de não se manifestar como algo passível de ser colocado deliberadamente em questão sem um esforço considerável de nossa parte, como saberíamos se examinamos criticamente todas as autoevidências que formam nossa percepção? Como saberíamos que não estamos confortáveis demais com aquilo que é normalmente tido como o caso, mesmo no interior de circuitos em que se reivindica, a todo momento, o pensamento crítico?


O texto de Rancière funciona como a fórmula crítica predileta de Žižek: e se fosse o contrário? E se aquilo que nos aparece como indubitável simplesmente não fosse o caso? E se estivéssemos o tempo todo vendo algo de uma maneira que atrapalha mais que contribui nossa luta? E se a força e vivacidade de certas percepções tiverem mais a ver com um desejo que com a verdade? No entanto, não se trata de reivindicar o pensamento crítico como forma permanente de desvelamento do real por trás do que aparece. Trata-se, para Rancière, de colocar sempre o sensível contra ele mesmo. O conceito-imagem é parte desse confronto. Não é que ele nos ofereça a forma mais racional de falar de política ou a forma verdadeira de descrever o fenômeno político. Uma imagem não tem como função ser verdadeira, mas orientar as relações entre inteligível e sensível, entre discurso e percepção, entre aquilo que pensamos ser o justo e o nosso desejo. Uma imagem não é uma fotografia, embora essa seja uma de suas potências. O que está em jogo na linguagem que incorpora o dissenso como manifestação de uma diferença sensível é sempre os efeitos de nossa insensibilidade. Imagine que as coisas não são assim, mas são de tal ou tal forma. O que se tem como efeito dessa mudança? No curso “As imagens do demos: pensar politicamente a partir de Jacques Rancière”, veremos exemplos do modo como Rancière elabora seu pensamento no caso do conceito-imagem de demos ou povo. Veremos o que se torna possível a partir do momento que realizamos esse movimento imaginativo – que adotamos essa linguagem do dissenso como forma de pensar.

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Para se inscrever nas aulas sobre Jacques Rancière e Chantal Mouffe, que começam na terça-feira, 18 de agosto, acesse: https://www.tempodoagora.org/cursos

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