O novo livro de Judith Butler, "A Força da Não-violência" (2020), representa um novo momento da sua crítica ao modelo de individuação neoliberal e suas consequências destrutivas. No entanto, seguindo o projeto de crítica filosófica que a autora vem construindo, são raras as vezes em que o problema é engajado diretamente e não situado, em que fazê-lo visível já é parte do próprio esforço argumentativo. Nesse sentido, a mais recente obra constitui um momento de transição que tanto aponta novos desdobramentos de sua denúncia da violência colonial e neocolonial, quanto excede análises anteriores e as dá novos efeitos ao serem atualizadas. Assim, diferente daqueles momentos em que "Problemas de Gênero" (1990) ou mesmo "Vida Precária" (2004) eram publicados, hoje são mais de 30 anos de produção filosófica articulados em um único livro. Se antes a retórica da filósofa requeria um trabalho minucioso de "interpretação" e não só "comentário", agora temos de reconhecer o projeto aberto de filosofia crítica que ela vem cunhando. Sua crítica ao neoliberalismo está inserida no contexto contemporâneo de pensamentos "progressistas" que se reúnem em torno desse sintagma, todavia o trajeto da autora permite reconhecermos uma forma própria de definir e denunciar aquilo que ela entende por "neoliberalismo". O trabalho das pesquisadoras e pesquisadores do Grupo de Estudos em Judith Butler é orientado em torna dessa concepção: a pensadora tanto faz teoria crítica quanto constituí uma maneira específica de fazer filosofia, sempre marcada pela ambiguidade intrínseca à transposição de problemas reais para o âmbito teórico.
O seminário surge para apresentar alguns pontos de "A Força da Não-violência", a partir do trabalho que o grupo tem realizado desde a publicação do livro. Trabalho esse que só possível em correlação com a proximidade do Grupo de Estudos a professora Carla Rodrigues e a sua produção filosófica. A maneira com que Judith Butler faz filosofia constitui um projeto de crítica "em trânsito", de um pensamento que não se estabiliza e ganha força quando consegue trazer à tona aquilo que é "transitivo" ou "transitório". Assim, o seminário busca estabelecer vias de transposição entre a ética da não-violência e outros momentos da produção filosófica de Butler, sem buscar, contudo, exaurir seu conteúdo e sim perturbá-lo com o que podemos transpor a partir de momentos cronologicamente "passados". A proposição da ética da não-violência depende de um princípio radical de igualdade, capaz de fundamentar uma concepção de vida e vida humana que reflita não a ideia de "autopreservação" e sim os vínculos indispensáveis para a existência dessas vidas. Entretanto, o próprio fenômeno da violência prescinde de um quadro de referência legal para aparecer, ou seja, aparece já interpretado e sancionado em sua referência a esse mesmo quadro.
"A Força da Não-violência" apresenta uma nova perspectiva em que o fenômeno da violência precisa ser definido, ou entendido, por aquilo que "escapa às mãos". Ele aparece condicionado por um quadro de referência estatal que, inexoravelmente, formata sua própria inteligibilidade. Ou seja, a violência nunca se faz visível "em si" mas sempre aparece já interpretada, trabalhada por momentos e interpretações anteriores. Butler quer denunciar a forma que esses enquadramentos atuam para sancionar aquelas interpretações que refletem o monopólio estatal da violência, e não a preservação da vida ou mesmo a diminuição das práticas violentas. Em outras palavras, as práticas de violência são feitas inteligíveis quando enquadradas por discurso de legitimidade, quando é ou não justificável fazer uso da violência. A força da não-violência estaria em recusar a violência, não só nessa ou naquela situação, mas o quadro de referência em que ela só pode ser inteligível segundo a presença, ou ausência, de justificação. As lógicas da autopreservação ou autodefesa se tornam inúteis e não conseguem visualizar a ambiguidade central de um princípio radical de igualdade, dos vínculos sociais indispensáveis para o surgimento e manutenção da vida. Sob esse enquadramento, a ética não pode ser pensada como uma "defesa de si mesmo" e sim uma "defesa da vida", da relacionalidade que faz possível qualquer "si mesmo" a partir de um vínculo ético-político. A perspectiva da não-violência necessita da crítica de éticas egológicas, que semelhante à lógica estatal buscam asseguram um monopólio e não a defesa da vida em sentido amplo.
O livro novo parte, de maneira geral, do diagnóstico de que não podemos fazer crítica da violência perseguindo apenas o fenômeno, mas temos de produzir um enquadramento capaz de "enquadrar" o quadro de referência em que o próprio fenômeno se torna inteligível. Buscando então as condições de possibilidade para que tal enquadramento normativo se instaure e consiga perpetuar essa lógica estatal, Butler lança mão de uma série de autoras e autores que, ainda mantendo um espectro bastante diverso de campos do saber, podem ser articuladas conjuntamente a partir daí: estão, à sua maneira e tempo, pensando um tipo de teoria capaz de trazer à tona o aspecto estrutural da violência. "Estrutural" no sentido de dar conta tanto dos casos pontuais, "golpes", de violência, quanto do aspecto de uma racionalidade estruturando difusamente cada momento particular. Cada comunicação do seminário irá explorar uma seção específica do livro, todavia precisamente buscando estabelecer novos atravessamentos a partir de outras obras e compreender melhor a relação particular com aqueles pensamentos que a autora traz para o texto. De maneira geral, talvez nosso esforço seja em esboçar enquadramentos possíveis para as ambiguidades e contradições oferecidas no texto.
Até o texto presente, as ideias de "mundo" e "imaginário" não haviam aparecido como conceitos diretamente articulados, porém a recepção minuciosa da trajetória de Butler permite e faz potente reconhecer, por exemplo, um princípio radical de igualdade presente desde muito antes. Isso não aponta um desenrolar programático de um sistema de pensamento fechado, mas reforça a ideia de Butler constitui um modelo de filosofia transitório. A ordem cronológica de suas publicações não impõe uma via de mão única para leitura, acaba compondo fragmentos que mesmo carregando consigo algum sentido podem ser perturbados e excedidos quando colocados numa constelação instável. Como de costume, a autora não oferece soluções em "A Força da Não-violência", no entanto segue hegeliana ao empregar a negatividade não para "definir" e sim recusar certas definições.
Pretendemos com o seminário oferecer vias de interpretar o pensamento mais recente de Judith Butler, buscando recusar o projeto de "mundo" atualizado pela violência estatal e suas práticas de nomeação. O intuito não é perseguir soluções, mas construir perspectivas em que esse tipo específico de violência estatal seja correlato das violências coloniais e neocoloniais que Butler expõe em outros momentos. No final, encontrar uma nova gama de problemas a partir da recusa da racionalidade neoliberal em nome da interdependência, do luto, de um mundo vivível, de uma ética da não-violência.
O seminário é uma oportunidade para apresentar alguns pontos da obra "A Força da Não-violência" e amplificar as discussões que o Grupo de Estudos em Judith Butler vem realizando junto a profª. Carla Rodrigues, nossa convidada especial para fazer a conferência de encerramento deste evento.
As inscrições podem ser feitas pelo link: bit.ly/3mQ58pf
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