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Feministas Chicanas: um livro e um lugar não tão distantes do Agora

Atualizado: 9 de nov. de 2020

Texto convite para o curso Feministas Chicanas: flores e cores, escritas de mulheres que habitam e reabilitam a linguagem, do projeto Solidariedade em Cursos, Bloco 7 (inscreva-se aqui) e para o curso 1a. edição: As pensadoras latinoamericanas (informações e inscrições aqui)

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O livro This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color foi publicado pela primeira vez em 1981 pela editora Persephone Press e era uma coletânea de textos que circulava desde a década anterior nos meios acadêmicos e feministas marginais dos EUA, também de forma marginal.


O livro foi editado por Cherrie Moraga e Glória Anzaldúa, duas americanas lésbicas letradas de origem latina, que tentavam, em meio ao turbilhão deixado por 68 na Europa e no México e pelos protestos contrários à guerra do Vietnã nos EUA, falar de suas questões, sua opressão e posição entre o feminismo lésbico (branco e burguês), que também fervilhava naquele contexto, e suas vivências como latinas e de cor naquele país. O livro dava voz a todas as que ali escreviam e também colocava palavras ao vivido por todas as que o liam, especialmente as que, como elas, partilhavam da experiência de serem latinas e não-brancas nas terras do Uncle Sam.


No início as leitoras do livro foram jovens estudantes excluídas pelas mesmas razões que as escritoras, a origem latina, a marginalidade sacio-econômica, os familiares ligados a uma tradição/religião outra que a anglo-saxã da América do Norte, a pobreza, a cor da pele, o sobrenome, etc., mas depois também chegou às universitárias brancas-burguesas (lésbicas ou não, feministas ou não-ainda), aos escritores marginais, como os da literatura chicana que anteriormente não abriam muito espaço a elas, e a vários grupos ativistas de diferentes movimentos sociais (formados por homens e mulheres), que de uma forma ou de outra tiveram disponibilidade e sensibilidade para ler e sentir suas simbologias e metáforas, suas denúncias, suas elaborações teóricas, e, principalmente, se deixaram afetar por sua estética.

Sim, os trabalhos das chicanas são marcados expressivamente por sua dimensão artística, cuja atualidade política ainda impressiona. Elas constituíram e constituem um movimento que passa pela arte, pela força criativa feminina sem pré-definições. Seus textos, peças, imagens, objetos, performances, ..., se qualificam pelo conjunto de suas teses e simbologias, a maioria delas enraizada na questão da origem étnica e no fato de serem mulheres de cor no mundo globalizado, assim como nas referências constantes ao imaginário ancestral, ao mitos fundadores dos chicanos, à força de suas mães e avós e antepassados. Tudo isso, é preciso enfatizar, sem folclorismos ou purismos, pelo contrário, elas sugeriam uma constantemente (re)visão dos mitos chicanos e da história pessoal de suas antepassadas, rememorando e reinventando a força da não-assimilação ao patriarco-capitalismo no contexto da guerra fria no qual se encontravam, mas também (re)inventando a sagração e a profanação dessa história e dessa mitologia.


Em 1983, dois anos depois da primeira publicação do livro, Cherrie Moraga se juntou a Bárbara Smith e a Audre Lorde e começaram uma editora chamada Kitchen Table: Women of Color Press, considerada a primeira especificamente de textos de mulheres negras (women of color) naquele país. Aí elas lançaram, em 1986, uma segunda edição revisada do livro, agora também com trabalhos de Barbara Smith, Audre Lorde, Pat Parker, Cheryl Clarke, Merle Woo, Lakota e Barbara Cameron. O livro vendeu só naquele ano mais de 50 mil cópias e ganhou o Before Columbus Foundation American Book Award.


A edição representou para o movimento um ponto de partida editorial a tudo que emergiria depois, tal como um jardim selvagem, uma jungle que se emaranhava e se espalhava de modo incontrolável na direção da reabilitação dos modos coloniais de vida e de linguagem em nível mundial. Repleto de auto-referências a seus lugares de coloridas, marginalizadas, outras, e também de palavras e expressões em espanhol, a obra é uma mistura deliberada de estilos, de narrativa testemunhal, protestos e alegorias, e especialmente da mescla dos dois idiomas que falavam: o inglês e o espanhol. Aí vemos inaugurado o uso da nuance linguística Spanglish na literatura universal, esse idioma callejero (das ruas) que é a língua mais faladas nos estados do sul dos EUA ainda hoje.


O conteúdo de seus escritos é suas vidas e experiências, as delas e as das suas amigas, amantes, mães, irmãs, filhas, é o cruzamento destes tempos, a expressão de sua interioridade e a marcação, através da linguagem, de sua subjetividade e de seu lugar como sujeitas. Nestas obras elas narram e metaforizam o que experimentam em seus corpos feminizados e racializados, marcando assim uma posição política, um lugar de fala e de existência: a mestiçagem e a fronteira.


É de um locus fraturado, como elaborará Maria Lugones muitos anos depois e já no contexto do feminismo decolonial, que as chicanas falam e existem. É do lugar da fronteira, como teoriza Glória Anzaldúa, uma das mais expoentes escritoras chicanas hoje, que seus trabalhos chegam a milhares de pessoas no mundo e que compartilham com elas o fronteiriço da existência, seja por suas cores, seus gêneros, suas sexualidades, suas sub-condições finaceiras e marginalidade social, geográfica, religiosidades, origem, etnia, ou ainda e simplesmente pela sensibilidade (e talvez empatia) constitutiva deste sentir-se viventes em territórios de hostilidade.


Em 1988, publicou-se integralmente a versão em espanhol do livro: Esta puente, mi espalda: Voces de mujeres tercermundistas en los Estados Unidos. A adaptação ao idioma latino foi feita por Ana Castillo, hoje uma das mais premiadas escritoras de poesia nos Estados Unidos, e a tradução foi resultado do árduo trabalho de Norma Alarcón, uma professora e intelectual nascida no México e radicada nos EUA, doutora em literatura comparada e que há décadas inspirava e fomentava o trabalho daquelas Girls artistas discriminadas por sua classe, sua origem, seu gênero e sua sexualidade.

Norma Alarcón tinha sido professora de muitas delas nas disciplinas de estudos étnicos, estudos da mulher, estudos indígena e de espanhol junto ao departamento Gender and Woman Studies da Universidade da California- Berkley. Em 1979, ela criara uma pequena editora chamada Third Woman Press, com o objetivo de fomentar a publicação do trabalho de mulheres negras e latinas e o diálogo entre elas. Para ela, manter uma editora era um modo de fazer circular os trabalhos e as ideias destas mulheres, de sorte que até 1987 publicou anualmente uma coleção de antologias de escritoras de diferentes regiões geográficas dos EUA. Pela Third Woman Press foram publicados mais de 30 livros e antologias de mulheres de cor, inclusive tendo sido aí que uma terceira edição do livroThis Bridge saiu em 2002 e seguiu sendo reimpresso até 2008.

A publicação em espanhol ganhou novos ouvidos e adentrou o território da América Latina, consolidando então as Chicanas não só como um grupo de mulheres latinas dos EUA, mas de todo o continente. A historia do termo ganhou definitivamente uma nova narrativa e ele se saturou com novos significados, o adjetivo que marcava a separação e a exclusão delas virou símbolo de coalisão, de sua força criativa e de vida, e reconfigurou o próprio feminismo ao fazer entrar nele essa figura nova: da mulher de cor chicana.


A relação entre as costas ou o traseiro (back) e a ponte (bridge) é um simbolismo que metaforiza muitas questões inerente ao movimento, às viagens das pessoas que emigram aos EUA pela ponte das próprias forças do corpo; aos espalda mojada ou Wetback que chegam pelo rio Bravo; à força de todos e todas que sendo migrantes - tal qual os retirantes no Brasil do mesmo período- trabalhavam mais e ganhavam menos e assim carregavam o país nas costas.


Essa alegoria da ponte aparece explicitamente no poema The Bidge Poem de Donna Kate Rushin logo no início do livro, e faz referência a este lugar ocupado pelas mulheres que transitam entre dois mundos, entre o mundo letrado e suas famílias e comunidades não-brancas. A ponte é as costas dessas mulheres de cor que passam as vidas entre mundos. É sobre suas costas que carregam o peso da ligação entre mundos, e é também nelas que sua força, seu poder e sua essência de ligar mundos se localiza.


O texto de Norma Alarcón que integra o livro, sob o título Chicana's Feminist Literature: A Re-Vision Through Malintzin/ or Malintzin: Putting Flesh Back on the Object, traz um referencial teórico aos trabalhos das chicanas por meio da exploração de um arquétipo ou paradigma que é a figura histórica da Malinche. Através de uma revisão da história da ancestral azteca, Alarcón intersecta temporalmente dois mundos, o indígena, pré-colombiano, azteca, originário, chicano, com o moderno, branco, globalizado, patriarcal, industrial. Ela enfatiza como essa indígena letrada representada na figura da escrava-amante-tradutora e ponte comunicativa entre o colonizador e os nativos, também é a ponte entre duas mulheres: a branca-humana-abjeta, a ser cuidada, preservada, controlada e cerceada, e a indígena-não-humana-abjeta que podia ser violada em diversos sentidos. Malinche foi a ponte entre Azatlán e o México, entre o passado e o futuro, entre o selvagem e o civilizado, ela foi a mãe da mestiçagem, o mito de origem de um povo novo, que viria a falar as duas línguas, inclusive viria a misturá-las num novo idioma.


A partir deste arquétipo, a gangorra pela qual as narrativas sobre a Malinche costumavam oscilar foram totalmente invertidas. As antigas alusões a ela como uma mulher que pendia ora à vitimização, ora ao escárnio por ter dito todos os segredos de seu povo ao colonizador, foram completamente reelaboradas. O mito da mãe dos chicano como figura de força virou então trampolim, aparato mitológico que serve como mola propulsora ao empoderamento das novas malinches e as que se autoproclamam Chicanas. Assim, entre o passado e futuro, entre suas tradições e o liberalismo avassalador do país mais rico e poderoso do mundo, elas foram/são os dois momentos encarnados, a memória viva de seus povos e o projeto do que se tornariam, a tradição e a novidade em um só corpo, as Malinches do século XX.


Sandra Cisneros, outra premiada Chicana que se juntou ao grupo mais tardiamente, relata em seu livro A casa da Rua Mango (um dos poucos livros de chicanas traduzidos ao português, pela editora dublinense) como umas ajudavam às outras a se consolidarem como escritoras, e enfatiza principalmente a importância do trabalho da Normita, em referência a professora Alarcón, que foi uma espécie de mentora dela e das outras chicanas. No romance ela diz a Norma:

"Até que nos reunisse a todas como escritoras latinas _Cherrie Moraga, Gloria Anzaldúa, Marjorie Agostín, Carla Trujillo, Diana Solís, Sandra Maria Esteves, Diane Gómez, Salima Rivera, Margarita López, Beatriz Badikian, Carmen Abrego, Denise Chavez, Helena Viramontes _ até então, Normita, não tínhamos a menor noção de que o que fazíamos era algo extraordinário"


O que expressa outro detalhe importante do movimento e da chicanidade ou latinidade dessas escritoras, que é a aliança e a ajuda mútua. Desde que o território do New Mexico deixou de ser mexicano para ser indexado aos EUA, os novos americanos foram nomeados e excluídos pelo termo chicanos (as) e sua forma de resistir foi a vida em comunidade, os encontros familiares, as alianças afetivas, la fiesta, as celebrações religiosas como dia de muertos, a música, a dança, os encontros e as grandes refeições conjuntas. Isso se mantinha e destoava cada vez mais da vida moderna estadounidense das décadas finais do século XX. Os Wetback oriundos dos diferentes países da América Latina e do Caribe, inclusive de territórios estadunidenses, como é o caso de Porto Rico, chegavam aos EUA e aí sobreviviam se ajudando, sobreviviam graças a este espírito de comunidade e a partilha da experiência da travessia, das lembranças da terra, das indicações para trabalhos que quase sempre eram temporários e, principalmente, pela partilha do sonho que os levara aí: possibilitar um melhor futuro aos filhos e netos.


O sonho também era pesadelo, passam a vida toda no purgatório em nome da redenção de seus filhos e filhas. As Chicanas eram a geração que deveria ter tido o direito de adentrar o céu, só que os sistema não permitia. Enquanto seus pais e mães tinham sido peça fundamental para a consolidação do American Dream aos brancos e brancas nativos do país, trabalhando como cozinheiras, babás, empregadas, às famílias dos estadounidenses tal qual as suas colegas negras, o que foi permitido a seus filhos e filhas foi ser chamados de Dreamers.


As chicanas escritoras foram Dreamers, sonhadoras que apesar de trazerem no corpo as marcas da cultura familiar e da latinidade, sonhavam e passaram a acreditar no que suas famílias tinham projetado para elas. Elas queriam poder querer o mesmo que as mulheres americanas podiam esperar para si mesmas e que queriam que todas elas pudessem fazê-lo.


Em A casa da Rua Mango, a protagonista é uma personagem que se chama Esperanza e representa justamente o que a palavra evoca em espanhol para todos os descendentes de latinos daquele país, homens e mulheres: a esperança de devirem pessoas, cidadãs, seres com vida, e não só sobreviventes num território que não lhes pertence.


A leitura deste trabalho, e da maioria do trabalhos das Chicanas, é cheio de cheiros, de cores e de flores, típicos das memórias da infância, mas também típicos do México, da Guatemala, de Honduras, de Porto-Rico, dessa latinidade colorida e caricata, que também é cheia de dor e de amor. São textos feministas, na medida em que evocam uma força e uma empoderamento e liberdade às mulheres, a todas elas, especialmente as atravessadas por todas as discriminações dentro do patriarcado, como a cor, a classe e a sexualidade; mas também são femininas na medida em que estão cheias de calor e que compõem laços afetivos, que expressam o comunitário, o grupal, a visão de mundo e forma de ser no mundo que é marcada pelo lugar de fronteira: do bilinguismo, do ancestral-futurista, do subterrâneo e da terra entrelaçado ao plástico, artificial e futurista. As Chicanas escritora são a escrita da intersecção dos corpos brancos e pretos, do selvagem e do civilizado, do ser mulher e ser outra, da mezcla, da mestiça, de um viver fronteiriço, de um existir como dreamer e de habitar o entre, de ser ponte.


Por Viviane Bagiotto Botton

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