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Maria Walkíria Cabral

Drucilla Cornell, in Memoriam

Tradução autorizada da homenagem feita por Lewis R. Gordon à Drucilla Cornell, para Black Issues in Philosophy.


Trata-se de uma revisão da reflexão sobre Drucilla Cornell para a Frantz Fanon Foundation. Foi publicada aqui, em razão da importância de Drucilla Cornell na história das filosofias africana e feminista.


"Eu acordei em uma manhã de meados de dezembro de 2022 ao som da performance de Thelonious Monk para Duke Ellington “I Didn’t Know About You”. Essa bela melodia me fez pensar em minha querida camarada e amiga Drucilla Cornell. As razões são várias ao longo de uma trilha de “talvez”. Tal como os existencialistas frequentemente refletem, ninguém conhece totalmente ninguém. Nós entendemos muitos sobre os outros quando eles se vão, mas há sempre mais. Na passagem deles, se entende seu maior significado na vida daqueles que continuam a viver.


Dada nossa estreita amizade, que perpassou quase três décadas, eu irei me referir a ela como “Drucilla”. Eu sei que ela iria gostar assim, no espírito de como ela costumava se referir a Rosa Luxemburgo como simplesmente “Rosa”, em razão do profundo impacto do pensamento de Luxemburgo em sua vida.


A intensa chama de vida de Drucilla começou a enfraquecer em setembro do ano passado e finalmente se foi em 12 de dezembro de 2022. Eu uso essa metáfora para sua passagem, porque foi como os amigos de Frantz Fanon o descreveram, como conta seu irmão Joby, ainda que em Peau noir, masques blancs (1952), Fanon abriu suas reflexões, profeticamente, com preocupações sobre uma chama arrefecedora. Ele se uniu ao seus ancestrais em 6 de dezembro de 1961. Drucilla e ele dividem o décimo segundo mês do ano, com uma estranha numerologia de seis dias.


Drucilla adorava Fanon. Ela o via como um dos maiores pensadores que ela admirava, de Hegel a Marx a Luxemburgo e o colocou especialmente com Luxemburgo, ela via um irmão e uma irmã motivados pelo poder do amor radical.


Eu estou certo de que se Frantz e Drucilla tivessem se conhecido, a admiração seria mútua. Ambos os pensadores eram revolucionários treinados em profissões “práticas” – Frantz Fanon era psiquiatra; Drucilla Cornell, advogada. Ambos eram veteranos de um histórico de lutas por libertação, que continuo até seus últimos suspiros. Ambos tinham profundo amor pela filosofia, mas se recusaram a fetichizá-la. E, claro, ambos viam a interligação do pensamento e sua relação com a beleza, dignidade, liberdade, amor, verdade e realidade.


Apesar do amor por grandes pensadores, Drucilla Cornell e Frantz Fanon não eram elitistas. Eles entendiam que todos tinham um papel na percepção das grandes possibilidades do pensamento e que o papel específico de cada pessoa era único. É sem dúvidas esse o motivo pelo qual Drucilla dentre tantas pensadoras feministas que, ao ler os escritos de Frantz Fanon, imediatamente evocou a expressão Zulu “Sawubona”: “Eu vejo você”.


Um obituário suscinto da Drucilla está disponível no site do Hannah Arendt Center. Eu ofereço aqui reflexões adicionais sobre sua importância para a comunidade do Frantz Fanon Center e aos leitores de Black Issues in Philosophy.


Uma ativista desde a adolescência, Drucilla era guiada por um compromisso em fazer sua parte na construção de um mundo habitável. Sua vida foi marcada por muitos desafios, que ela me relatou durante um quarto de século. Nesse percurso, o que a fortaleceu foi o espírito de amor que ela recebeu de sua avó materna, que fortaleceu sua admiração e busca por formas de amor manifesto, os quais Hegel chamou de “Espírito Absoluto”. Sua avó gerenciou uma gráfica e nutriu sua imaginação enquanto a iniciava em formas plurais de conhecimento, em frequentes viagens às comunidades Afro-americanas em Watts, Los Angeles. Elas iam de ônibus ver a vidente ou líder espiritual africana de sua avó. Essas visitas nunca foram marcadas pelo medo de pessoas pretas, que, por exemplo, contagiaram Drucilla nos anos 50 contra a propaganda racista de seu país de origem. Ela testemunhou as contradições de uma sociedade que desumanizada seres humanos, enquanto confessava seu pressuposto direito como defensora da liberdade.


Quando Drucilla tinha 16 anos de idade, sua avó imprimiu várias cópias de uma coleção especial de pensamentos de Hegel sobre amor, para acompanhá-la em encontros. Pode-se imaginar Drucilla levando o livro a cada pretendente, certamente, perplexo. Essa dialética complexa de conhecimento plural, testemunhando desigualdades materiais e a dinâmica do amor da humanidade generalizada a investimentos românticos da vida cotidiana, encontrou nos seus anos tardios, nos seu entendimento da vida política, quando ela se tornou uma ativista sindical, uma ativista contra o racismo e o machismo, uma intelectual e uma professora.


Eu preciso acrescentar que Drucilla era uma polímata. D.A. Masolo uma vez me contou um provérbio Luo, quando eu o parabenizei em um evento em sua homenagem: É uma pessoa com um olho, que avistando uma outra também com um olho, vai até ela e diz: “Você tem um olho”. Drucilla foi uma brilhante matemática com um amor para a física teórica; ela amava poesia; ela escreveu peças; ela escreveu histórias e biografias; ela escreveu tratados jurídicos e filosóficos. Eu amava discutir questões teóricas com ela em várias disciplinas. Ela tinha aquele raro dom de ser capaz de processar ideias complexas em nanossegundos, mesmo que, curiosamente, ela era uma ludista quando se tratava de dispositivos multifuncionais, tais como computadores e os chamados “smartphones”. Dentre seus maiores prazeres estava a aprendizagem. Suas várias horas com seus interlocutors, que iam dos alunos aos seus colegas a atividas locais e artistas, eram sua maneira amável de dizer a tantos: “Você tem um olho”. Como ela era também surda de um ouvido, a expressão alcança além da visão, uma vez que ela se esforçou tanto para ouvir. De certa forma, a vida dela foi marcada por esforços em ouvir, ver e entender todos que ela conheceu.


Amor, para Drucilla, era uma forma dedicada de amor. Amar e ser amado em retorno exige comprometimento para construir possibilidades nas quais o eu nunca se fecha. Ela leu Hegel dessa forma, o que a logo levou a um trabalho teórico em teoria do Direito. Isso foi feito concomitante com seu trabalho ativista em sindicato e sua dedicação em lutar em frentes múltiplas. Ela era membra de partidos de esquerda radical e em alguns liberais; ela trabalho com comunidades repensando a ideia de remédios jurídicos para além daqueles limitados pelo Estado. Esses comprometimentos a atraiu para o pensamento de Jacques Derrida, que acabou se tornando o padrinho de sua filha Sarita, que também é uma artista e ativista sindical.


Drucilla cumpriu um papel central em trazer a Desconstrução para a Teoria do Direito através de uma série de inovadoras antologias e monografias – por exemplo, , Beyond Accommodation: Ethical Feminism, Deconstruction and the Law (1991), Deconstruction and the Possibility of Justice (1992), The Philosophy of the Limit (1992), Transformations: Recollective Imagination and Sexual Difference (1993) — nas quais ela ofereceu sua contribuição para a Desconstrução, que, nos devemos nos lembrar, não é uma teoria fechada, mas sim uma aberta e eticamente motivada compreensão teórica e prática. Hoje muitas(os) ativistas e teóricas(os) falam de limites necessários, mas poucos pensam sobre o paradoxo de liberdade ilimitada tida como uma autorização versus liberdade responsável – compelida por responsabilidade ética – manifestando limites que servem como condição de possibilidade de liberdade de fato. Para Drucilla, essa ideia sobre liberdade foi uma pista para aquilo que mais tarde ela chamaria de Direito dos Direitos. Legitimidade jurídica requer um Direito sobre outro Direito, no qual o Direito não é usado para o lawfare[1], para guerra com fins de instrumentalização legal, mas ao contrário para bem-estar ou para vida vivível.


O entendimento de Drucilla sobre a conexão entre amor e revolução, limites que permitem florescer vida vivível, a levou a repensar problemas de ausência daqueles silenciados e isso a conduziu de volta a Rosa Luxemburgo e Frantz Fanon, cuja relação com seu querido Hegel não era óbvia, ao contrário, era uma inovação. Drucilla trouxe essas duas luzes para conversar com tradições de todo espectro do Sul Global a variedades de pensamentos feministas numa síntese que transcende a divisão Norte/Sul. Seus escritos teóricos de fato ressintonizaram as viagens com sua avó a Watts, mas agora para além dos Estados Unidos, levando-a para a África do Sul, onde, no espírito da sua avó, ela procurou o conselho de Sangomas. Para Drucilla, Corte Constitucional de Justiça na África do Sul, Professores pesquisadores nas maiores universidades, e um grande público de intelectuais era apenas parte de uma sociedade complexa na qual a Sangoma, como Boaventura de Souza Santos diria, era a contribuição para uma pluralidade epistêmica e legitimação de práticas de conhecimento. Foi essa ideia que atraiu Drucilla para o uBuntu, que é uma complexa forma indígena africana de entendimento relacional de vida ética, direito e responsabilidade política.


Saindo do formalismo estreito sobre ideais, Drucilla ofereceu uma compreensão de ideais razoáveis ao invés de ideais formalistas racionalistas fechados. Seu objetivo sempre foi ser construtiva. Ela leu sobre a vida e obra de Fanon e Luxemburgo como um projeto dialético aberto, ao invés de fechado, formado por compreensão existencial do valor do comprometimento prático, no qual resultados nunca eram garantidos sem performance. A sua discussão sobre ideais, em termos de razoabilidade, pode ser encontrada seu livro de 2004, Defending Ideals: War, Democracy, and Political Struggles, e a expressão do seu pensamento existencial dialética, sobre mudanças por vir, estão em seu livro de 2007 Moral Images of Freedom, que ganhou o prêmio da Associação Filosófica Caribenha (Caribbean Philosophical Association) Frantz Fanon Outstanding Book Award. Outro, uBuntu and the Law: African Ideals and Postapartheid Jurisprudence (2012), publicado na coletânea Just Ideas, que ela editou com Roger Berkowitz, trouxe elementos do projeto uBuntu que ela co-organizou pela África do Sul, de Cape Town até Venda, em reflexões acadêmicas. Da mesma forma foi Law and Revolution in South Africa uBuntu, Dignity, and the Struggle for Constitutional Transformation, publicado em 2014. Esses são apenas fragmentos da sua criatividade e compromisso intelectual.


Pertinente para a Fundação Fanon, a virada Fanoniana de Drucilla, embora iniciada em seus anos de trabalho com grupos antirracistas radicais no sul da Califórnia no final da década de 60 até a década de 70, finalmente tomou forma de adesão ao projeto do século XXI de creolizar teoria, como projetado por Jane Anna Gordon, cujo tratado Creolizing Political Theory foi publicado na coletânea Just Ideas, em 2014, e outros membros da Associação Filosófica Caribenha (Caribbean Philosophical Association), que participaram das coletâneas de livros Creolizing the Canon e Global Critical Caribbean Thought. Essa era uma tendência natural, dado ao fato de seu trabalho unir pensamento dialético com desconstrução, psicanálise e filosofia e jurisprudência africana. Esses são elementos que já estavam lá em seus escritos, como eu já havia citado e discutido seus pensamentos muito antes no meu primeiro livro Bad Faith and Antiblack Racism (1995) e em quase todas as minhas obras subsequentes. Foi pensando sobre esse entendimento da importância de seu pensamento, que eu a convidei para escrever o posfácio do meu livro de 2015 What Fanon Said. Foi, como vi, uma forma de dizer “Sawubona”.


Creolizing Rosa, que Drucilla co-editou com Jane Anna Gordon, lembra ao mundo do adágio revolucionário, do que é necessário para a liberdade para todos. Luxemburgo, devemos lembrar, entendeu a importância da África do Sul e dos países caribenhos, tais como Martinica e Guadalupe, enquanto seus colegas intelectuais europeus ainda estavam presos à problemática pressuposição orientalista da razão “juvenil” surgindo no Oriente e atingindo a maioridade no Ocidente. Sua identificação com Rosa Luxemburgo – e Frantz Fanon – atestou sua convicção de que a globalidade do pensamento não somente surge de várias direções, mas também deve fazê-lo por meio da interação dessas confluências em todos os níveis da sociedade. Liberdade divorciada da realidade não faz sentido e projetos de autopurificação bloqueiam o espírito de liberdade para uma importante linha de vida, que tem como premissa relações com alcance da humanidade: realidade. Esse é o chamado central de, em uma palavra, revolução.


Drucilla falou Sawubona durante toda sua vida para tantos invisibilizados. Esse foi seu comprometimento, porque, como mulher, ela estava atenta à complexa generificação histórica da divergência entre falar e ser ouvida, ver e ser vista e formas de ver aquela proporção não vista. É bastante incomum e comovente que, assim como Fanon que teve Les Damnés de la terre (1961) publicado pouco antes de sua passagem, o último livro de Drucilla, Today’s Struggles, Tomorrow’s Revolutions: Afro-Caribbean Liberatory Thought, com bases no compromisso filosófico existencial e político do Sul Global de fazer o que se deve, mesmo sob ameaças de desespero, niilismo político e violência, foi publicado algumas semanas antes de ela se juntar aos ancestrais.


Agora, quando eu tiro meus sapatos para falar, ensinar ou derramar libações, eu penso na Drucilla entre tantos corajosos, amados ancestrais, que amaram tanto a ponto de doer, que lutaram por um mundo melhor até o último suspiro, que entenderam tão claramente as causas, mais do que a si próprios, cujas vidas foram um início para tantas outras, e obrigado a ela, dentre eles, por ter vivido e enriquecido as vidas de tantos com dignidade e amor".


Lewis R. Gordon

Tradução Maria Walkíria Cabral


[1] N.T.: Foi feita a opção de não traduzir, considerando o uso do termo no inglês pelos teóricos do Direito no Brasil. Lawfare seria o equivalente à instrumentalização do Direito para justificar “atos de guerra” ou “atos de exceção”. Não se confunde com o ativismo judicial, em que pese suas similaridades. Um exemplo no Brasil de lawfare seria a decisão do STF (2016) em condenar um acusado antes do trânsito em julgado, instrumentalizando o Direito Constitucional para criar um estado de coisa excepcional a fim de satisfazer aparentes demandas sociais.

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