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Victor Galdino

"Descolonizando o cotidiano".

Atualizado: 5 de out. de 2020

Existem muitas formas de falar do que permanece. Existem muitos riscos de falar do que fica no devir do mundo, e mesmo na passagem entre um mundo e outro. E há também muitas aparições diferentes do que nunca foi embora. Poderíamos entrar no longo debate sobre termos como "descolonial", "decolonial", "pós-colonial" e suas variações, mas o curso "Descolonizando o cotidiano" não segue um programa teórico e sim as implicações de um encontro. Um encontro que começa com um erro de leitura. Assistindo uma aula de Tássia [Áquila] no semestre passado, juntei citações de dois textos diferentes na cabeça: O mundo é o meu trauma de Jota Mombaça, e Quando encontro vocês - Macumbas de travesti, feitiços de bixa de Castiel Vitorino Brasileiro. Buscando por algumas palavras que se fixaram em mim, cheguei em um texto de Jota que não havia sido citado, Veio o tempo em que por todos os lados as luzes desta época foram acendidas:


"DESEJAMOS PROFUNDAMENTE QUE O MUNDO COMO NOS FOI DADO ACABE. E esse é um desejo indestrutível. Fomos submetidas a todas as formas de violência, fecundadas no escuro impossível de todas as formas sociais, condenadas a nascer já mortas, e a viver contra toda formação, no cerne oposto de toda formação. Desejamos profundamente que o mundo como nos foi dado acabe. E que ele acabe discretamente, no nível das partículas, na intimidade catastrófica deste mundo destituído de mundo, este mundo que até a própria terra rejeita".

Em certo sentido, os três textos carregam um espírito em comum. Qualquer um deles poderia ter me feito chegar ao mesmo ponto, e esse ponto era o reconhecimento de que uma pessoa com a qual tenho uma relação de amizade há muitos anos estava ocupada com algo que também me ocupava. O encontro é um acontecimento que depende de que as coisas sejam vistas de outra maneira. Sem isso, ele não poderia ser ponto de partida que se manifesta no meio. O encontro depende sempre da possibilidade de que, de repente, imprevisivelmente, uma faísca de comunidade corte o ar, consuma o ar que não aguentamos mais respirar, mostre a oportunidade para que algo seja feito em colaboração. Da possibilidade de que possamos ainda nos surpreender com possibilidades mesmo ouvindo uma pessoa tão familiar. Uma dessas possibilidades é seguir uma trilha comum que não é a mesma que as outras já percorridas - é encontrar um novo em comum para levar adiante, junto de outros. Uma outra possibilidade é a do encontro se multiplicar. Afinal, na mesma aula, o Everton [Rangel] foi citado algumas vezes, alguém que eu também conhecia há muitos anos, e fazia todo sentido que ele fosse chamado a se juntar a nós. Se aquela aula ali despertou um desejo, esse desejo também tinha, como uma de suas faces possíveis, um encontro mais amplo, uma colaboração a três.




Há encontros que ocorrem apenas no fim do mundo, outros que se dão por um desejo compartilhado que um mundo acabe. Nunca há encontro que ocorra tarde demais, ainda que possamos desejar que ele tenha se dado antes, ainda que possamos alimentar essa ilusão de que o encontro obedeça a algum protocolo de aparição que o faça emergir no lugar certo, na hora certa.

E um desejo que faz duas ou mais pessoas se encontrarem dificilmente é o único desejo que essas pessoas têm em comum. Como exemplo, posso falar de Veena Das, uma antropóloga lida por Tássia e Everton e que será apresentada no curso, que tem Wittgenstein como uma de suas grandes influências filosóficas, algo que provavelmente já haviam me dito no passado, mas que só agora pode me despertar uma série de desejos e interesses. Wittgenstein, o mesmo Wittgenstein que tanto me marcou desde a graduação com toda sua preocupação com algo que parece ridículo perto de tantas elaborações grandiosas: a vida, especialmente a vida que escapa frequentemente ao imaginário filosófico, a vida cotidiana com suas realidades desordenadas, como diria o antropólogo Tim Ingold, o mesmo que definiu a antropologia como "filosofia com pessoas dentro". Uma definição-imagem que poderia ser tida como ofensa, como algo que não diz nada ou como elogio dependendo de onde circulasse na filosofia, mas que não deixa de mostrar algo fundamental: a filosofia é marcada hegemonicamente pela tentação do enclausuramento no interior do texto. Não seria possível ou mesmo saudável falar de herança colonial sem a antropologia ou as filosofias que colocaram gente pra dentro, e é por isso, antes de qualquer coisa, que falamos em "cotidiano".

E falamos em "descolonizando" porque há uma tarefa interminável no tempo de uma vida, que é essa de lidar com uma permanência, porque somos feitos de matéria colonial, porque o fim disso não é possível ao fim de uma vida de confronto, reorientação, vitória, redenção. O fim disso vem com o fim deste mundo que herdamos, e o desejo por esse fim nada mais é que o desejo que, um dia, essa herança seja menos violenta. Que um outro dia, depois desse dia, o colonial seja herdado como lembrança distante do que já fomos. Há quem diga que essa distância já está aí, mas essa percepção só é possível quando se olha as coisas pelo enquadramento épico que mostra a vida jurídica do Estado como centro do mundo. Não é a palavra no ar rarefeito que pode medir uma distância, mas o corpo. Antes de qualquer elaboração teórica, o corpo disse algo. Há quem deseje que o corpo fique mudo diante da teoria, do texto, um texto que se pretende não ter relação com o corpo porque esse corpo nunca fechou o mundo, porque o mundo nunca se fechou diante dele, nunca fechou esse corpo como condição para que permanecesse, para que tudo permanecesse como estava, como tem sido.

"Como tem sido" não é apenas uma forma de nomear os efeitos do colonialismo. As violências que vieram junto deste mundo, que já estavam nele antes de nós, que prepararam o cenário de aparição desse "nós", que prepararam as condições dessa aparição e do seu recebimento, que definiram trajetos recomendados como mais apropriados, que nos deram uma lista de possibilidades desanimadora, uma lista de compras que mais parecia uma lista de itens básicos para a sobrevivência em cenários distópicos - essas violências não se resumem a um conjunto de efeitos, de consequências, de coisas das quais infelizmente ainda é preciso se ocupar porque infelizmente houve um crime.

Se, como Mbembe diz, raça se sustenta pelo exercício colonial do poder de não-ver, isso que não é visto não é visto de variadas maneiras, mas sempre diz respeito a algo que poderia impor uma demanda ética, colocar uma interdição contornável apenas pelo exercício de uma violência socialmente tida como inaceitável, mesmo inimaginável: esse algo que chamamos de "humanidade", ainda que isso signifique coisas diferentes em cada momento do não-ver. Podemos também dizer: tudo que podemos chamar de "racismo" e "colonialismo" só ocorre porque alguma coisa falta para impedir que ocorra. Alguma coisa na percepção, na imagem, na forma de ver um corpo, um sujeito, na maneira de sentir uma presença. O cotidiano é o lugar onde trabalhamos o problema da descolonização porque nele encontramos as pessoas, e não apenas sujeitos do conhecimento, sujeitos da ação moral e outras abstrações úteis e poderosas que, no fim das contas, ainda são abstrações que podem ser abstratas demais, excessivamente distantes. Está tudo bem no campo das abstrações, ainda que se demonstrem algumas preocupações, e está tudo bem porque não há corpos nele, a não ser corpos abstratos, que sentem números e conceitos, distantes do corpóreo, corpos esvaziados de corpo.

Esvaziados de corpo no cotidiano, o corpo que nunca poderia ser digerido conceitualmente, o corpo que arrepia ao som da besta, que se camufla para desviar dos olhares mais violentos, que acelera internamente quando sua entrada é barrada, que fica rígido para poder responder educadamente e nada mais, que engole o ódio do mundo diariamente, que digere esse ódio e retorna com um sorriso, um sorriso que é elogiado, porque esse corpo está muito sério às vezes, parece que está com raiva de alguma coisa. Corpo que construiu a infraestrutura por onde esse cotidiano passa, e também o palco onde outros corpos recebem holofotes e se destacam desse mesmo cotidiano. Corpo que deixou tudo pronto, limpo e funcionando para que um outro corpo dissesse algo extraordinário, especial, significativo, verdadeiro. Corpo que nunca saiu inteiramente da noite, da escuridão, da zona que habita o não-visto produzido pelo poder colonial. Corpo sem o qual não haveria este mundo, que deseja este mundo, mas que não pode ver a hora dele acabar, porque, enquanto aconteciam os eventos parlamentares dos livros de História, em algum lugar, estava deixando tudo pronto, limpo e funcionando, com os músculos dos braços e das pernas doloridos, com a pele salgada, o estômago roncando, os olhos cheios de sangue, o coração apertado.

Há um véu sobre parte da sociedade. Esse véu esconde que nossa sociedade é feita das violências permitidas porque se esconde algo com esse véu.

A violência está aí - "discretamente, no nível das partículas, na intimidade catastrófica". Não apenas como efeito contingente e infeliz, mas principalmente como matéria da qual este mundo é feito. Não apenas como o que aparece na cena do espetáculo, mas principalmente como aquilo que autoriza seu começo. Em certo sentido, podemos dizer que a escravidão não foi apenas causa violenta de violências que permaneceram, mas que, antes de qualquer coisa, foi efeito de uma violência, desdobramento, um desdobramento dentre outros, e é por isso que o não-ver pode se exercer de muitas maneiras - é possível não ver que a escravidão não era algo fechado em si, um sistema criado a partir do nada, cujos efeitos poderiam permanecer depois dele, como se ele não fosse efeito de algo que ainda permanece, algo que não tem a escravidão senão como um de seus momentos, seu pior momento, ou assim esperamos. Nunca teria havido escravidão sem que houvesse um trabalho desordenado, improvisado, incoerente, ordenado, sonhado, consistente de construção do mundo onde a escravidão seria, antes de qualquer coisa, imaginável. Depois de imaginável, possível, desejável, plausível, provável, necessária, urgente, essencial para a sustentação do próprio mundo. O cotidiano é o mapa e o lugar de navegação onde encontramos a evidência dessa permanência, a evidência do trauma que é este mundo.

Descolonizar o cotidiano não é uma metáfora.

Descolonizar o cotidiano não é possível sem o encontro. Há uma esperança por algo grandioso, uma revolução cinematográfica, algo que esperamos, esperando algo que não vem, esperando enquanto algo não vem, esperando que algo aconteça sem que ninguém se encontre, como se textos pudessem fazer todo o trabalho sozinho, como se o trabalho a ser feito fosse apenas entrar numa revolução já pronta, que está no futuro, mas está pronta, ninguém a fez, não há corpo dentro dela, ela não se desdobra de cotidiano algum. Há uma profunda ansiedade com relação ao encontro, ansiedade que produz a tentação de ficar dentro do texto, de ficar dentro do debate, do argumento, na tentativa de acertarmos no alvo, de nos certificarmos que nada poderá sair do controle, de encontrarmos tudo pronto, limpo e funcionando. Este mundo não sobreviveria sem essa esperança e essa ansiedade. Esperança que nos livra do peso de sermos responsáveis pelo futuro, ansiedade que nos livra dos riscos de sermos responsáveis pelo futuro. E, ainda assim, somos responsáveis, mesmo quando esperamos, quando nos deixamos levar pela ansiedade. Quando foi que, permanecendo na esperança e na ansiedade, encontramos o amor, não apenas como força que se aproxima perigosamente do seu objeto, mas como lugar para construção do futuro? Falamos muito deste mundo, do mundo que desejamos que acabe, mas há muitos outros mundos escondidos no interior dele. Fragmentos de mundos, talvez. Eles estão por toda a parte. O encontro é um acontecimento que depende de que as coisas sejam vistas de outra maneira.





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Para se inscrever nas aulas do bloco temático "Descolonizando o cotidiano", que começam na terça-feira, 06 de outubro, acesse: https://www.tempodoagora.org/cursos.

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