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Agamben contra o neoliberalismo

Em uma entrevista concedida a Juliette Cerf em 2014 intitulada “O pensamento como coragem”[1], o filósofo italiano Giorgio Agamben parafraseia a célebre frase de Marx citando o situacionista Guy Debord, ao também parafrasear Marx: “as condições desesperadoras da sociedade em que vivo me enchem de esperança”. A sentença, retirada de uma carta de Marx a Arnold Ruge de 1843[2], aparece para introduzir o modo como o próprio filósofo compreende sua filosofia, afirmando que “qualquer pensamento radical sempre adota a posição mais extrema de desespero”.

Vivemos – no que parece ser o ponto extremo de um sistema econômico que só visa tornar nossas vidas matáveis e na falência política de um governo cuja insígnia se tornou o próprio gesto de matar, marca característica do bolsonarismo – uma época de desesperança e é sempre urgente a coragem em se confrontar com ela, seguindo aqui o que disse Simone Weil: “Não gosto daquelas pessoas que aquecem seus corações com esperanças vazias. Pensamento, para mim, é exatamente isso: a coragem de desesperança”.

Na carta de Marx citada por Agamben, o filósofo alemão tecia sérias críticas à filosofia, a qual acusava de ter se tornado banal. Para Marx, o desenrolar histórico do capitalismo e as transformações operadas por ele traziam uma nova exigência. Não mais bastaria que a tarefa da filosofia fosse antecipar dogmaticamente o mundo, mas, ao contrário, ela deveria querer encontrar o novo mundo através da crítica que a precede. Ainda segundo Marx, até aquele momento os filósofos tinham a solução de todos os enigmas e, ao mundo, caberia apenas ter aberto a boca “para que caíssem nela as pombas assadas do conhecimento absoluto”. Mas, a partir de então, seria necessária uma crítica impiedosa de tudo o que existe, não temendo seus resultados nem aqueles que detêm o poder.

Essa breve explanação do teor da carta de Marx tem o intuito de explicitar o contexto do qual Agamben retira o que poderia ser um resumo e um objetivo de sua filosofia desesperançada, atendendo ao endereçamento marxista de que uma crítica impiedosa não deveria temer seus resultados.

Dito isso, é muito respeitosamente que proponho uma réplica ao artigo “Agamben sendo Agamben: o filósofo e a invenção da epidemia”[3], escrito pela filósofa brasileira Yara Frateschi. Como a intelectual afirma na Rede Brasileira de Mulheres Filósofas, não se faz filosofia sem dissenso pela simples razão de que o pensamento morre na ausência das diferenças”[4], afirmação com a qual concordo plenamente e motivo pelo qual gostaria de entrar no debate.

Identificada como parte da esquerda brasileira que encontra no pensamento de Agamben possibilidades teóricas para pensar o nosso tempo, gostaria de afirmar que o movimento de Agamben é justamente o contrário de uma postura neoliberal – com suas prerrogativas do Estado mínimo, da autorregulação do mercado, das políticas cruéis de austeridade fiscal e privatizações sistemáticas –, uma vez que encontramos em sua teoria, para citar um exemplo, não apenas a crítica à sociedade de classes que sustenta o modelo neoliberal produzindo suas amplas desigualdades, mas ainda um exemplar histórico do que poderia ser a sociedade sem classes imaginada pelo comunismo marxista, onde qualquer tipo de propriedade privada teria sido abolida.

Refiro-me ao livro Altíssima pobreza: regras monásticas e forma de vida (Homo Sacer, volume IV, parte 1, Boitempo, 2014), no qual Agamben investiga uma comunidade monástica franciscana que teria abolido a captura da vida pelo direito ao instituir como regra não o fundamento jurídico violento pressuposto pelo direito, mas uma forma-de-vida – cuja grafia hifenizada tenta articular gramaticalmente o nexo entre uma vida inseparável de sua forma e , por isso, incapturável pelo ordenamento jurídico- calcada na ideia de uso comum, que dista bastante de um sistema que apregoa a concentração de bens e serviços nas mãos de uns em detrimento de muitos outros, como o neoliberalismo. Em “A Europa precisa colapsar”[5], Agamben diz claramente que “inventar uma forma de vida, que não esteja fundada na ação e na propriedade, mas no uso [Gebrauch] – uma tal tarefa é a que deveria assumir uma política que vem”.

Além disso, sua crítica ao capitalismo se mostra também implacável quando retoma as teses de Benjamin em “O capitalismo como religião”, apontando como o dinheiro ocupou o lugar vazio de um Deus secularizado, respondendo na entrevista “Deus não morreu. Ele tornou-se dinheiro[6] que “o fato de o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o titulo de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: ‘salvar o euro a qualquer preço’. Isso mesmo, ‘salvar’ é um termo religioso, mas o que significa ‘a qualquer preço’? Até ao preço de ‘sacrificar’ vidas humanas? Só numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas”. A resposta de Agamben mostra justamente o contrário de uma perspectiva neoliberal: de que não vale sacrificar vidas humanas em nome da salvação de um sistema econômico, contrapondo-se frontalmente às perspectivas de Bolsonaro de “salvar a economia”.

Quando o filósofo chama a atenção para a crise do coronavírus e as medidas excepcionais de gerenciamento da crise tomadas pelos governos, não o faz pelo apreço às liberdades individuais e tampouco por ignorar as vidas vulneráveis expostas ao risco da morte. O faz porque desconfia de que o dispositivo que estrutura essas mesmas medidas visa reforçar a condição precária de descarte e de desumanidade que os corpos matáveis do capitalismo, do racismo e do patriarcado continuarão experenciando depois de “superado” esse evento.

Em “Novas reflexões”[7], um dos breves textos escritos durante a pandemia, ele destaca a “gravíssima responsabilidade dos governos em desmantelarem o serviço sanitário nacional”, demonstrando sua preocupação com os sistemas públicos de saúde que, sucateados, não poderiam auxiliar a população em uma situação dessa natureza. É justamente esse processo de precarização do público que permite que governos escamoteiem suas responsabilidades, transferindo o compromisso político de saída da crise para os indivíduos, imputando a cada um a culpa pelo fracasso, isso sim, um pilar da lógica neoliberal.

Como ele também propõe na já citada entrevista “Deus não morreu. Ele tornou-se dinheiro”, a palavra “crise”, assim como “economia”, não são “usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. ‘Crise’ hoje em dia significa simplesmente ‘você deve obedecer!’”.

Sua obra, portanto, carrega um gesto corajoso de desnaturalizar os discursos do poder e lançar luz sobre práticas e decisões políticas que operam com conceitos vazios. Talvez seja o esforço incansável do autor e do seu método arqueológico, que nunca cessa de ler e reler o passado, ao buscar na história os rastros e vestígios daquilo que permaneceu não formulado, o que nos permita uma crítica à altura de um período tão nebuloso.

O que mobiliza Agamben ao assumir esse papel complexo é seu compromisso com uma radical tarefa filosófica de não se esquivar das “trevas do presente”, posição desconfortável que o leva a interrogar o que parece inquestionável, como, por exemplo, o lema insuspeito de “preservação da vida”, tão presente nos textos escritos durante a pandemia. E, para tal, é justamente o pensamento dele, Agamben, que nos fornece ferramentas teóricas para ler o agora: pensamento que nunca deixou de outorgar-se a inquietação a respeito de qual tipo de vida – a nua, a politicamente qualificada ou uma indistinção entre as duas – se quer, de fato, preservar.

Imagem: Alfredo Jaar, Cultura=Capital

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